Juno Nedel
6 min readAug 6, 2019

O dia em que eu, trans, me alistei no exército brasileiro

Hoje eu, Juno Nedel, passei a contragosto pela seleção de alistamento militar no 63º Batalhão de Infantaria de Florianópolis (SC), Brasil.

Acontece que, como retifiquei meu nome e meu sexo jurídico aos 25 anos, em novembro de 2018, fui obrigado por lei a agir como qualquer outro cidadão brasileiro do gênero masculino com mais de 18 anos: ou seja, precisava me alistar e conseguir o certificado de dispensa militar. É aqui que essa história começa.

Cheguei no 63º Batalhão de Infantaria antes das sete da manhã. O sol não tinha nascido por completo e a sensação térmica ficava abaixo dos 8°C. Daí decorre que não sei até agora se tremia de frio ou de medo, ou por uma combinação particularmente intensa dos dois.

Os militares que nos receberam no pátio do batalhão (nenhum deles terá nome nessa história) já começaram gritando orientações para que a gente se iniciasse desde cedo na lógica marcial:

“Isto é uma ordem, formem fila em dois blocos aqui na frente”

“Desmanchem essa linha, quero todo mundo atrás daquele rapaz”

“NÃO TÁ ESCUTANDO DIREITO, seu filho da puta? Experimenta pisar na bola mais uma vez pra ver o que te acontece”

E de repente me vi em formação no meio de quase oitenta caras cisgêneros em seus dezoito anos de idade, muitos deles bem mais nervosos do que eu, mudos e encolhidos de frio. Naquele lugar e momento, ninguém fazia ideia que eu era trans — na verdade, a grande ironia disso tudo é que meu gênero nunca foi tão respeitado, nem mesmo em espaços feministas supostamente trans-inclusivos. Confesso que cheguei a me amaldiçoar de leve por ter ganhado um pouco de bigode e barba tão pouco antes do alistamento; na minha cabeça, se eu chegasse ali com uma aparência indiscutivelmente feminina, talvez todo mundo soubesse desde cedo que aquele não era e nem nunca seria o meu lugar.

Enquanto esperava na fila, tentando manter minhas mãos aquecidas, pensei naqueles argumentos já caquéticos de que a transgeneridade é uma condição que não tem materialidade; de que, na nossa sociedade, as pessoas serão educadas e vão ocupar determinados lugares sociais unicamente em função de seu órgão genital. E senti vontade de rir comigo ao me perceber de fora: um corpo andrógino, um menino com buceta no meio de 80 meninos com pau, um corpinho com uma combinação tão peculiar de características sexuais secundárias que isso faz com que nem se imagine que eu exista.

O fato é que o binarismo cisnormativo tem muitas fendas e eu geralmente acabo esbarrando nelas, seja por questão de sobrevivência, por uma postura ético-política pessoal ou por pura aleatoriedade da vida. E isso é um aspecto que certas feministas cis-centradas custam a entender.

Mesmo os feminismos que incluem trans-identidades (eles existem!) costumam focar nas experiências de mulheres, esquecendo-se de todas as pessoas que foram assignadas mulheres ao nascer, que cresceram em uma sociedade machista e que, no entanto, não são mulheres. Este é o caso de pessoas transmasculinas e algumas pessoas não-binárias. Nossas experiências, via de regra, são esquecidas ou tidas como menos legítimas porque se desviam do sujeito universal do feminismo. É quase como se nós não existíssemos para os movimentos sociais que hipoteticamente nos representam.

Saí do meu transe quando um militar resolveu repreender o rapaz que estava na frente da fila. O motivo da explosão era uma banalidade qualquer, algo como ele ter demorado demais para apresentar o documento de identidade. Senti uma batida de leve no meu ombro.

“Ô amigo, tira essa touca. Os militares não gostam disso”

Arranquei a touca na hora, sabendo que a última coisa que queria era começar meu dia ouvindo esporro de militar. Aquela alma benevolente repetiu o toque no meu ombro e me assegurou baixinho: “Tá tudo bem, amigo”. E nesse momento fui muito grato pela política de broderagem que existe entre caras.

Estando ali, resolvi jogar na lógica deles. Antes que o sargento pudesse dizer qualquer coisa, eu já havia mandado um “bom dia, senhor”. Eles gostam quando a gente reafirma posições hierárquicas. É verdade que tinham algumas criaturas audaciosas ali também. Moleques que se recusavam a aceitar ordens de primeira e faziam piada em voz alta; que se fingiam de desentendidos e desobedeciam regras expressas. Isso de certa forma dava um calorzinho no coração, sobretudo por saber que eu não era o único que odiava todo esse teatro da masculinidade hegemônica.

Fomos levados em fila até uma ampla sala dentro do prédio do batalhão, onde mais ordens foram repassadas, sempre em tom disciplinador. Um tenente tentou ligar uma televisão. Na tela, apareceram as palavras “DITADURA NUNCA MAIS”. Mal houve tempo de acompanhar o vídeo. O tenente já adiantou “ah não, não vou passar esse vídeo aqui”, desligou a tela e correu para pegar um pendrive com outro colega. De fato, o diabo está nos detalhes. Fomos condenados a assistir um teaser com cenas de socialização entre marinheiros marombados ao som de Paradise, do Coldplay, a manhã inteira.

O sargento passou distribuindo formulários com perguntas sobre nossa condição de saúde. Essa seria a primeira etapa, ele disse. Na sequência, passaríamos por uma triagem, pelo exame físico e, caso aptos ao serviço militar, por uma entrevista. Senti o meu estômago perfurado por mil agulhas de gelo. Nunca a frase “boys don’t cry” fez tanto sentido para mim. Mas eu não era o único nervoso ali: já havia muita gente levantando a mão e pedindo autorização para ir ao banheiro.

Resolvi preencher o formulário da maneira mais obviamente transgênera possível.

Possui alguma doença?

Sim, endometriose.

Já fez alguma cirurgia?

Sim, no meu útero (sou trans).

Já foi internado alguma vez?

Sim, como decorrência da cirurgia no útero.

Faz uso de algum medicamento controlado?

Sim, deposteron (testosterona).

E fiquei pensando comigo: o que faço caso eles não acreditem em mim? Não existe nenhuma comprovação de que eu seja transgênero exceto pela materialidade do meu corpo. Quão plausível seria eu ter que provar que tenho um corpo trans na frente de todo mundo dentro do Batalhão da Infantaria? A essa simples ideia senti que suava frio, mas mantive o foco. Aquele era o momento decisivo: eu precisava me fazer entender antes de chegar na sala do exame médico.

Quando fui chamado até a mesa de triagem — “Juno Nedel”, “Presente, senhor” — já disse logo de antemão que era trans. O semblante do tenente se tornou grave.

“Mas você já mudou o documento?”, ele perguntou em voz baixa. Concordei. “E você quer servir?”

“Não!”, eu acabei rindo (mas de nervoso)

“Mas o que é isso, tem que servir”

“Não, senhor. Já estou seguindo carreira acadêmica”

Ele encarou meu documento por mais um tempo.

“E é por isso que eu queria pedir por discrição no exame médico, senhor”

O tenente entendeu na hora. Começou a tratar o caso como um assunto ultraconfidencial da nação.

“Faz assim”, ele cochichou, “Você fala isso pro dentista e essa informação morre ali, taokey?”

Mas ele mudou de ideia e resolveu me acompanhar pessoalmente. Acabei furando toda a fila do exame médico enquanto o tenente sussurrava o meu precioso segredo no ouvido do dentista.

“Hmmm, ok, sim senhor”

Assim descobri que preciso de tratamento em quatro dentes da arcada superior e inferior. Depois do exame bucal mais breve da minha vida, fui encaminhado para o pelotão dos dispensados, cheio de garotos que mal disfarçavam a própria alegria. Um deles havia inventado uma história super-complexa sobre uma bronquite que atacava nos momentos mais inesperados e que com certeza o impediria de servir ao exército. Nem mesmo o sargento comprou essa história, mas resolveu deixar para lá.

“O que uma bronquite não faz com o cara, né?”, o moleque sussurrou para nós e todo mundo segurou o riso. Não tínhamos permissão para conversar entre nós.

Ali aguardamos por mais uma eternidade em silêncio até a última triagem.

“Por que você foi dispensado?”

“Porque eu sou trans”

O tenente, até então de cabeça baixa, resolveu olhar no fundo dos meus olhos. E perguntou baixo:

“Mas você veio direto pra cá, né?”

Assegurei que não, não tinha passado pelo exame médico. E logo fui liberado de mais essa etapa.

Por fim, entramos em posição de sentido para prestar o juramento à bandeira nacional. Infelizmente acabei no primeiro lugar da fila, então é certo que existe alguma foto minha com uma expressão muito detestável, cabelo desgrenhado e olheiras profundas, jurando defender esta pátria — erigida sobre o sangue de muitos povos, é preciso dizer — com minha própria vida. Difícil não ficar enjoado.

O sargento lembrou: “Agora torçam para não entrarmos em guerra. Porque se entrarmos, vocês serão os primeiros na linha de frente. A gente não quer sacrificar nossos homens mais capacitados primeiro, não é mesmo?”.

Em algum lugar da fila, alguém murmurou: “Bem-vindos ao exército brasileiro”

Juno Nedel
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Written by Juno Nedel

Trans não-binário. Vegano. Não-monogâmico. Jornalista. Mestre em História.

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